O grupo foi crescendo e o quintal se tornou pequeno para reunir tanta gente e alegrar os sábados, domingos e feriados pela manhã… Com o tempo, a turma foi ganhando visibilidade e passou a ser convidada para tocar em espaços maiores. O jovem músico virou “tio” da garotada e começou a receber apoio de comércios locais, de escolas públicas ou de igrejas que queriam brilhar como “amigas da comunidade” nos eventos populares. Ele se tornara nitidamente uma liderança local.
Alguns anos depois, esse jovem da periferia enxergou nessa dinâmica bem-sucedida uma oportunidade para si próprio, ou seja, unir o seu dom musical e capacidade de liderança para se tornar um empreendedor social. Só que agora ele já estava casado e com dois filhos. Daí, não poderia continuar atuando de forma (apenas) generosa e voluntária. Teria que encontrar maneiras para que essa sua iniciativa social da música conseguisse custear o seu próprio sustento e também o das outras pessoas que fossem se engajando.
O desafio estava, pois, lançado. De imediato, viu que teria que formalizar o empreendimento, o que significou obter um “CNPJ” para poder começar a existir. Daí em diante, ele teria que fazer tudo da maneira “legal”, seguir todas as obrigações impostas pelo governo e arcar com os respectivos custos da empreitada. Foi quando ele percebeu como o mundo formal é desafiador e cheio de exigências, que muitas vezes parece querer atrapalhar as boas intenções.
Obstinado, o nosso empreendedor social comunitário não esmoreceu. Ao contrário, frente aos desafios impostos, ele até se sentiu mais forte para perseguir o seu sonho: transformar vidas por meio da música. Iria começar na comunidade em que nascera, e depois expandir para outras comunidades também vulneráveis.
Ele decidiu ir atrás dos seus amigos e conhecidos da comunidade. Uma vez que a sua causa era do bem, ele achava que iria poder contar com a colaboração generosa deles. Na realidade, foi assim no princípio. Conseguiu orientação e apoio para criar uma OSC (organização da sociedade civil), com o formato de “associação” e com todos os quesitos mínimos necessários para garantir a sua existência, como a especificação de quem seriam os associados e conselheiros, redação do Estatuto, definição da sede, e por aí vai… Até de um sobrado abandonado na região ele conseguiu para ser a sede.
Mas não tardou e as dificuldades foram aumentando. Começou com o sobrado, ou melhor, com os elevados custos para a sua legalização e recuperação/adequação. Os seus olhos brilhavam só de pensar que iria poder atender a garotada e os seus familiares com um padrão “de primeiro mundo”.
Ele fazia de tudo para superar as dificuldades que ia encontrando: assistia a todos os cursos e seminários gratuitos de gestão do terceiro setor; participava de reuniões com representantes do setor público e com políticos para tentar angariar simpatia e poder apresentar o seu pretendido trabalho; buscava aproximação com as igrejas locais; resgatava as velhas amizades; se inscrevia em todos os editais de seleção de projetos de que tinha notícia pela internet; visitava algumas empresas e instituições locais buscando apoio. Era incansável e obstinado!
Porém, o nosso empreendedor foi aos poucos percebendo que, uma vez com a associação já formalizada, estava muito difícil prosseguir. Parecia que o seu sonho estava ficando cada vez mais distante, estava difícil se manter motivado e exibir aquela empolgação genuína e vibrante dos tempos das batucadas no quintal da casa de sua mãe, anos atrás. A duras penas, o máximo que ele estava conseguindo eram doações pontuais de um ou outro material para remendar o sobrado; e também apoio técnico voluntário para elaborar um projeto social e um site, ambos consistentes com o desejo dele de ajudar e o seu sucesso do passado, porém (possivelmente) com quase nenhuma sintonia com as necessidades presentes das famílias locais ou da própria Associação.
Por que aquela iniciativa social, tão fervorosamente desejada pelo nosso empreendedor social, com sucesso estrondoso antes mesmo de se tornar uma OSC, não estava deslanchando?
Parecia até que ele tinha sido atingido pela “maldição do sobrado”, tamanha era a sua preocupação inicial com a recuperação do prédio. Também havia o sentimento dele de estar preso dentro de um círculo fortemente perverso, sem saída: a Associação não começava a funcionar porque não tinha dinheiro nem financiadores. Mas também não tinha financiadores, porque não estava funcionando e ainda não tinha resultados para mostrar (aos financiadores). Então, como destravar esse círculo impiedoso?
Você já passou por isso? O que você fez para superar todas essas dificuldades?
Por que essa iniciativa, que 15 anos atrás parecia fazer tanto “sucesso” nessa mesma comunidade, não comove mais e nem atrai parcerias e investimentos sociais?
Sem dúvida, essa é uma pergunta complexa. Eu não teria uma resposta pronta para dar, mas vejo que não apenas nas iniciativas sociais, mas em geral, a fase do nascimento é uma etapa crucial na vida de uma organização. É preciso investir um bom tempo no planejamento, ter paciência com os primeiros meses, às vezes anos, de modo que a organização encontre a sua razão de ser, legitimidade, apoio da comunidade e parcerias diversas; e consiga ir gradualmente desenvolvendo e moldando o seu modo de atuar.
No caso relatado do nosso empreendedor social, pudemos ver que ele tinha muitas qualidades, um histórico bonito e empolgante, mas incorreu em vários erros de gestão. Dentre as suas qualidades, destaco o idealismo, as boas intenções, ser uma pessoa entusiasmada, ser da própria comunidade em que pretende atuar, ser entrosado e ser proativo. Porém, ele cometeu alguns erros iniciais de gestão graves e capazes de inviabilizar o seu empreendimento social, tais como: atuação individualizada; perder o foco com facilidade; colocar os meios na frente dos fins; perder a sintonia com as necessidades da comunidade; querer crescer rápido e pular etapas.
Texto adaptado do
“Por que uma iniciativa social não deslancha”, de Maria Cecília Prates, publicado no blog Estratégia Social.
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